segunda-feira, 4 de junho de 2012

Fui ao Rock in Rio e sobrevivi


Ontem fui ao Rock in Rio e fiz parte daquilo que interessa! Posso afirmar hoje com orgulho que não sou uma excluída da sociedade. Participei nesse grande movimento coletivo, alinhei na fábrica da Roberta Medina, alimentada a marketing e publicidade, que resume a duas premissas a vida dos portugueses: ou bem que se é alguém, ou bem que não se é, leia-se: ou se vai ao Rock in Rio ou então mais vale cortar os pulsos. Ora bem, dado que não tenho tendências suicidas, ontem fiz a romaria, acompanhada por 75 mil pessoas, à Cidade do Rock. O calor humano, os gritos de 'Portugal Portugal', os chapéus, óculos de sol e as cristas florescentes, com marcas estampadas por todos os lados e bandos de imbecis a fazerem publicidade gratuita ao mundo capitalista, eclodiam por todo o lado. O povo estava em delírio. Não sabia qual das filas escolher. A do Multibanco? A do wc? A da montanha russa? Ou a da telepizza? Onde há filas há portugueses a vibrar no coletivo, onde há brindes há famílias a chapinhar de felicidade, onde há álcool, há harmonia humana a espalhar-se no ar, onde há música... Bem, a verdade é que a música não é para aqui chamada.
Primeiro concerto do dia: uns senhores muito british pop chamados Kaiser Chiefs sobrem ao palco e nem cinco minutos depois uma senhora ao meu lado, num brasileiro do nordeste e permanente no cabelo à anos oitenta, me pergunta, apontando para o puto de vinte e poucos anos aos saltos no palco: "Desculpa, mas é o Bruce?" Olho para ela e agradeço o sol ainda ir alto e os óculos escuros esconderem a minha cara. "O Bruce? Não, são os Kaiser Chiefs". "Ahhh... Pois.... E o Bruce, a que horas é mesmo?". "À meia-noite". "Ouviu isto Amílcar, o Bruce é à meia-noite, ora essa, hem?". O Amílcar nem olha e aproveita para emborcar mais uma cerveja e é então que reparo que, entre os pés da senhora não estava uma mochila, mas uma criança deitada, pressuponho que filha da brasuca trocada dos horários e do Amílcar com nariz vermelho, com menos de dois anos, a dormir placidamente e prestes a ser pisada por um grupo de adolescentes aos pulos.
Não sei se a criança sobreviveu até ao fim da noite. Calculo que o número de mortos não seja divulgado pela organização. Nessa altura da noite avancei mais uns metros no terreno para ver os James, que concerto do caraças é verdade, mas logo quatro tipas já crescidas mas vestidas como se tivessem 14 anos, e a comportar-se como se submetidas a uma lobotomia, surgem do nada, instalam-se à minha frente e começam a roçar-se num black que está ao meu lado e que nem acredita na sorte do que lhe está a acontecer. Enquanto eu sirvo de escudo humano do meu namorado contra as maníacas assassinas, elas conseguem pedir a todos os gajos em redor que lhe tirem fotos, na qual espetam braços e pernas numa versão decadente de umas spice girls da Picheleira, enquanto agitam o rabo, sem sequer olhar para o palco, antes para os gajos em redor, que o Tim Booth está demasiado longe, lá a dançar frenético em cima do palco, e elas é querem ser comidas à bruta, mesmo ali, se possível filmadas para a posteridade, para terem uma história a recordar.
O concerto acaba. Tento sair para ir comer alguma coisa, porque não trouxe farnel, pensei que ia para um festival de música e não para um remake do ‘Meu Querido Mês de Agosto’. À minha volta, acumulam-se os sofás vermelhos insufláveis que ocupam o espaço de seis pessoas num recinto à pinha, mas que alguns seres teimam em instalar no chão, imaginando que estão na sala do seu apartamento na Reboleira a ver a transmissão na SIC Radical. E há senhoras claramente incomodadas por serem apoquentadas com o facto de haver quem queira passar no intervalo dos concertos para, sei lá, fazer uma mija ou beber qualquer coisa. Revoltam-se. Mandam vir. Estão ali com o sofá e o farnel e aquilo é delas e acabou e há quem as aborreça. Sou agredida por uma delas. Agrido com um empurrão de igual força. Estou preparada para lutar até à morte, mas ficamos pelos insultos verbais. Continuo a escalar a multidão. Eu e o meu namorado em luta pela sobrevivência. Há mães a gritar com os filhos. Há putos imberbes aos pulos mesmo sem música. Há os senhores da sociedade recreativa do Torreó de Cima a beber cerveja. Há quem cante o slogan da Vodafone. Há excursões da Madeira e da Vila do Conde, com t-shirts estampadas onde se pode ler ‘eu vim de longe’ e coisas assim.
Há a noite que começa a cair e a esconder os rostos. Há o Circo de Feras dos Xutos e a nostalgia da adolescência. Há um enorme alívio. As formas diluem-se e posso finalmente suspirar. O que os olhos não vêem, o coração não sente. Por fim, tenho a ilusão que somos todos iguais.
E há o Bruce Springsteen.Genuíno, trazendo consigo a lembrança que a vida pode ser uma comemoração. E a noite, e a música, fazem como que todos nos tornemos pardos e nos rendêssemos à evidência que it's all rock 'n' roll. Sem marcas e patrocínios injectados diariamente no nosso cérebro. Sem gritos de Portugal. Sem mães imbecis a arrastarem crianças como se fossem mochilas e mulheres rendidas aos seus ícones de plásticos, rihannas porno deste mundo. Sem seres que se entregam como ovelhas às manobras oportunistas de quem os manobra como marionetas para encher a pança de dinheiro. Pelo menos foi assim que imaginei o mundo durante os minutos em que estávamos todos dancing in the dark. Obrigada Bruce.

5 comentários:

  1. ahahahahahahah NÃO FUI! E recuso a cortar os pulsos, que me fazem falta para usar as minhas pulseirinhas!

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  2. Por acaso este até foi dos primeiros relatos inteligentes que ouvi do rock in rio... não fui, mas isso não interessa nada. Fico já advertida para o caso de ponderar ir, no futuro.

    Gostei muito do final, assim mais para o poético =) a sensação é mesmo essa, que ainda há esperança no meio de tanto de tão mau...

    Ah! Obrigada por não teres colocado aqui as tuas fotos no Rock in Rio com a legenda a mencionar onde compraste cada uma das peças.

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  3. .

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    . se há qualidades com as quais me delicio . a lucidez . é uma delas .

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    . e aqui . a lucidez apresenta.se com uma tal claridade . tão brilhante . tão fulgente . que me leva a mais não dizer . sob pena de poder ser entendido . como um bajulador .

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  4. Eu estive por lá! A tua descrição é muito boa! Devo acrescentar que se trocares Kaiser Chiefs por Snow Patrol, ou Bruce Springsteen por outra coisa qualquer, tens a descrição daquilo que foi exactamente as edições anteriores! Rock in Rio é uma máquina de marketing muito bem oleada que consegue convencer até os mais cépticos que é preferível passar várias horas em desconforto absoluto do que estar noutro lado qualquer que não seja o recinto do Rock in Rio...enfim! Venha mais uma edição...

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