quinta-feira, 15 de março de 2012

Cumpre, paga e cala-te

O grande feito da democracia é ter-nos feito acreditar que éramos livres. Nos vetustos regimes autoritários tínha-se por garantido que, caso não andássemos na linha, íamos acabar nas masmorras de um edifício com água a escorrer das paredes e ratos a roçarem-se nas pernas, a levar choques eléctricos de um senhor chamado Igor. A democracia e o capitalismo uniram-se de há uns tempos para cá e mostraram que são muito mais inteligentes do que isso, de forma subtil e quase onírica, porque, apesar da nossa sorte estar determinada desde o momento da primeira respiração, o culpado não tem rosto, nem nome, nem cheiro - é o sistema. Mas isto não é nada: é que nem sequer temos noção que somos tudo menos livres. A escravatura comparada com isto era de uma pobreza semiótica total. Achamos que isto é natural. Que é assim que tem de ser. O ser humano foi esvaziado da capacidade de se questionar. O domínio é absoluto. E é tão simples, tão homogénea, tão linear a vida que nos está destinada que é óbvio que é assim que tem de ser, certo? Vai para a escola estudar, sê bom aluno, paga as propinas, arranja emprego, diz que sim, diz sempre, mas sempre que sim, não faças ondas, cumpre o teu horário para o resto dos teus dias e esquece essa ilusão que a vida te pertence, que o tempo te pertence ou que podes ser feliz, porque tens é de obedecer, endividares-te numa casa que pagas vinte vezes até ao dia da tua morte, e não te esqueças do seguro, do emi, dos impostos, da segurança social e da emel se te portas mal e mais a multa se não tens o colete, e mais a zon, meo e vodafone, e o arranjo do carro com dez anos e mais iphones, ipods e ipads e a taxa sobre a água que bebes e o ar que respiras, e o direito a sentares-te nesse banco de jardim e veres aquele quadro e leres aquele poeta e ouvires aquela música. Cumpre, paga e cala-te. Mais nada. E alguém diz que isto não é o que tem de ser?
Afinal, que mais pode um homem querer?

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