sábado, 28 de fevereiro de 2015

Mudam-se os tempos... e fica tudo na mesma

Aquela história batida de que uma criança nos muda é das maiores tangas à face da terra, uma das falsas ideias perpetuadas pela sabedoria da conversa de elevador.  De tanto se repetir sem reflexão, achamos que é normal dizer ao colega do terceiro andar que vai à nossa frente no elevador - não vá sucumbir naqueles quinze segundos à monotonia da viagem-,  que hoje está muito, muito frio,  mas que em princípio  vai chover amanhã e eis que o outro nos dá em troca o eficiente chavão do ah, mas prefiro mil vezes o frio à chuva no inverno, e dlim, a porta abre, uf, podemos prosseguir viagem em silêncio, acabou a obrigação de preencher o silêncio.  A conversa da maternidade mudar uma mulher é uma das variantes destes diálogos elevantidicos, mas não passa disso mesmo. Ser mãe não só não muda uma pessoa para melhor, como a antes faz vir à superfície o pior de muita gente. Mas ninguém se torna obcecada, neurótica,  protectora, galinha ou psicopata enquanto mãe se não fosse antes, de uma forma mais ou menos velada. Se calhar antes comprava fatinhos em tweet ao caniche que, mal nasceu a criança,  foi despachado para casa da irmã nao fosse a bebé, agora também ela toda em tweet, ser alérgica à criatura. A  mãe que amamenta a criança até esta fugir de casa aos dezasseis anos para ser sem abrigo (mas um sem abrigo feliz), era a mesma que antes dizia às amigas que o marido era um autêntico incompetente,  não fosse ela tomar conta dele e nem sequer sabia o que vestir para ir trabalhar ou dar uma queca decente, mas agora o desgraçado dorme no quarto de hóspedes, porque ela faz bed sharing com o filho.  Não mudamos porque nasce uma criança,  mudamos às vezes porque a vida nos dá tanta porrada que chega um dia que nos cansamos de estar a ser empurrados para as cordas do ringue, mas, sejamos francos, a maior parte dos seres humanos nem a ser espancado pela vida lá vai, permanece em relações tóxicas, em comportamentos instintivos, em rotinas marcados pelo medo, em jogos de poder e de ambição,  na ânsia de ganhar poder sobre o nosso outro ou tirando sustento emocional na posição confortável de eterna vitima. Era bom era que ser mãe mudasse alguma coisa. Talvez assim os psicológicos ficassem desempregados daqui a vinte anos.  Mas o que é tem muita força. E vamos continuar a foder muitas cabeças durante gerações e gerações, só porque é uma das coisas que o ser humano faz melhor. E isso ninguém refere no elevador.

1 comentário:

  1. "a maior parte dos seres humanos [...] permanece em relações tóxicas, em comportamentos instintivos, em rotinas marcados pelo medo, em jogos de poder e de ambição, na ânsia de ganhar poder sobre o nosso outro ou tirando sustento emocional na posição confortável de eterna vitima."
    Bem dito, tudo cru e verdadeiro. Escreves bem, na forma e no conteúdo :)

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