terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Carta aberta à neurose

Cara Sofia
A tua crónica foi publicada no P3 estava eu a entrar no oitavo mês de gravidez.A quatro semaninhas de parir, hormonas ao saltos, em casa de repouso para o puto engordar. Claro que as minhas amigas, umas queridas, me encheram o feed do Facebook com partilhas do dita testemunho de quem tinha iniciado há pouco tempo as delícias da maternidade e que eu, já se sabe, tinha de ler, para não entrar nessa noite escura sem a devida preparação. Mas, afinal, diziam-me algumas, compensa tudo. Não dormir, não comer, não foder, é tudo compensado pelo sorriso da criança. Mas há, aprendi quando li a tua crónica, um preço a pagar por essa felicidade, um calvário a empreender, uma Paixão de Cristo metafórica a viver, em que somos nós as crucificadas em nome de um bem maior: o sorriso da criança, pois então. Pois, sou louca encartada e não cortei os pulsos quando a acabei de ler. Imagino que se tivesse uma imaginação mais activa ou tendências depressivas sérias, provavelmente tê-lo-ia feito. Primeiro a ti, por comiseração, depois a mim. A crónica era um pouco como o filme Melancolia, de Lars Von Trier: o planeta vem aí, vai embater contra nós e vai tudo acabar, pronto, olha acabou. É que, de acordo com o que escrevias, não é apenas a nossa vida tal como a conhecemos que vai acabar. Não há lugar para ela, percebes? É um luxo do qual se abdica para se ter um filho e isso, isso sim, é um desafio. Qual trabalho, qual quê!  Mas, como eu sou do contra, achei ao ler essas linhas que devias estar louca ou ser um bocado histérica, ou estares descontrolada com  as hormonas, qualquer coisa assim do género, podia continuar, mas a terminologia situa-se sempre no planeta da descompensação emocional. Ou então querias só atenção (acontece, eu também adoro).

Pois bem, um mês depois, a minha criança estava cá fora. Veio para casa. Basicamente dormia. Basicamente comia. Basicamente fazia chichi e caganitas. Quando estava com fome e não lhe espetava o biberão na boca, chorava. Uma vez por dia, tinha cólicas, geralmente ao final da tarde, e chorava. Ora bem, o dia tem 24 horas. A criança também tem um pai. Por isso, não me parecia o suficiente para me roubar tanta hora de forma a não me restar nenhuma. Lá lhe dava o biberão de três em três horas como pedia a criança, que com isso não brincava em serviço. O pai dava-lhe o das duas da manhã, eu lá dormia das onze às cinco, seis da manhã e pronto, depois disso mudava a fralda, deitava a criança e dormia até às nove, dez, sem espinhas. Um luxo maior do que quando trabalhava. Horas contadas, tinham sido oito horinhas de sono.

Durante o dia lia o jornal, assustava-me com os programas da manhã, descobria a CMtv, ia ao Facebook constatar que, mais uma vez, não se passava nada, escrevia uns textos, perguntava-me porque é que o Nuno Graciano nunca tinha sido espancado com um pau, metia a conversa em dia ao telemóvel, papava séries e filmes, jantava fora uma vez com as amigas - o pai podia ganhar a vida como babysitter - e passado um mês e meio ia ao ginásio, ou seja, rapidamente endoideci com tanto tempo livre e lá tive de arranjar uns projectos para passar o tempo.

Sem saber como, talvez por milagre da multiplicação, os meus dias não eram passados a esterilizar biberões - uma vez por dia bastava, uma panela grande, biberões lá para dentro, água a ferver e já está, não é grande ciência, nem é como se tivessemos de soprar para manter a chama acesa -, nem a lavar roupa bolsada (todos os dias Sofia? Além disso aquilo é tão pequeno que se lava em dois minutos numa bacia no lava-loiças). E, por estranho que pareça, tomei banho, sim, tomei banho todos os dias, e até lavava o cabelo, colocava desodorizante, escovava os dentes, tirava a cera dos ouvidos e (pasme-se!) aplicava creme hidratante, um para o corpo, outro para a cara (o que é ainda mais inacreditável), com tanto vagar como antes só tinha quando estava de férias. O bebé dormia no quarto, o intercomunicador estava ligado, eu no banho e se ele chorasse não iria ser traumático para o seu bem-estar futuro se esperasse dois minutos até eu me limpar e vestir o roupão. Sofiazita (espero que não te importes que te trate assim), a alcofa no chão à porta da casa de banho? A sério? What the fuck?

O tempo insistia em perdurar. Tomava o pequeno-almoço a ver as noticias (quando é que eu antes fazia isso?), almoçava light para perder o peso a mais rapidamente que não tenho pachorra para esperar e jantava nas calmas com ele na alcofa, a dormir ou a olhar com aquela ar meio alien que eles têm nas primeiras semanas. E não, não andei com roupa bolsada. Primeiro, porque a criança não é muito de bolsar (é mesmo tudo para dentro, ou não nascesse em época de vacas troikadas) e depois porque as fraldas de pano foram feitas para colocarmos ao ombro quando as criancinhas arrotam. Desta forma, não se suja nada. Simples não é? Trocava de roupa todos os dias, com cada vez mais opções porque ia cabendo em cada vez mais peças. E pés descalços pela casa? Pés descalços, Sofia? Os bebés habituam-se ao silêncio como junkies, portanto este desde o primeiro dia que dorme com o barulho normal de uma casa habitada. E sim, saltos altos se for o caso não lhe roubam o sonho. Embalá-lo para dormir? Sua excelência dorme na cama e na alcofa. Não há cá choradeiras quando perde a chucha

Se há birras de fazer perder a cabeça? Claro que há. É um bebé, não a Carlota Cambalhota. Mas são dias. Ah sim, e há sempre o argumento pois, pois, mas tu não estavas a amamentar. Não, não estava, e se essa foi a causa da minha sanidade, ainda bem que não estavas. E dei graças a Deus - não Deus, mas o equivalente - por não ter dado qualquer crédito àquilo que escrevestes. Essa pode ser a tua experiência, mas quiseste torná-la A Experiência. Neurótica, é verdade, mas com a quantidade de mulheres neuróticas que há para aí, é fácil tornar-se uma seita. Cruz, credo, canhoto!


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