sábado, 13 de abril de 2013

O povo é quem mais ordena?

Ontem foi até ao São Jorge ao final da tarde ver a curta de um amigo (Um Documentário Bestial, ou como é que as touradas nos tornam um povo medieval em pleno século XXI) e pelo caminho, dado que a mesma estava entalada no meio de duas outras e não me restava outra opção, vi um objecto curioso chamado "Água Fria. Era um pequeno documentário que retratava uma realidade proto histórica que tem lugar numa praia do norte, onde, uma vez por ano, ruma uma pequena multidão para dar o sacramental mergulho nas águas não frias, mas gélidas, do oceano Atlântico.  É a romaria de São Bartolomeu do Mar, até aí para mim uma ilustre desconhecida. O realizador captava as imagens e lia-se a sofreguidão do momento, da experiência de estar ali. Aquela gente era feia, suja, escalavrada, com barrigas enormes, pernas deformadas, veias salientes do peso de viver, bigodes nos rostos delas e deles, faces vermelhas, roupas tristes, camisas abertas, saias repuxadas sobre as nadegas flácidas, crianças ranhosas a chorarem e a serem mergulhadas à força nas ondas por banheiros ditos santos e uma procissão mal enjorcada, de perucas tortas e andores tortos, com virgens rascas e um Jesus Cristo redentor meio a cair levado em ombros pela areia num Carnaval decrépito. Era tudo tão feio que, no conforto que vem de ser um outro ali que não nós, chega a paz de não ser aquela gente, a comer sopas de cavalo cansado, a parir criancas e a engordar, a coçar a orelha com a unha do dedo, cabelo ralo e oleoso, a deixar as mamas descair sobre o peso das aves Marias e mais a criança pendurada na teta porque o pudor do acto civilizado ainda não chegou e tudo é puro e animal. E depois deixo-me levar para o mundo limpo e asseado, de dois banhos por dia, corpos de ginásio e unhas de gel e condicionador para o cabelo e depilações a laser e cremes para o rosto, para o dia e para a noite, eau de toilette e desodorizante sem álcool, para os seres magros numa tal de moda de usar e deitar fora,  e lembro-me de toda a merda e sei que não é o velho bêbedo e sem dentes nem a mulher com a criança agarrada às saias que regem o mundo e mantém a seu bel prazer o povo real no seu dito lugar, a pregar todos os anos o Cristo na cruz, a rezar pelos homens para que não morram no mar, a curvar as costas, sempre mais baixas, sempre junto à terra para o parco sustento,  para que nós possamos encher o carrinho de supermercado com entrega ao domicílio e para que outros, mais polidos ainda, mais civilizados ainda, de fato e gravata, em condomínios fechados e automóveis de vidros fumados, possam mandar no mundo, no povo, e senti vergonha do alívio que me percorria, alívio de quê ou de quem, por acaso há mais nobreza em nós que bebemos de copos de vidro do que em quem o vinho rasca sorve na malga?  O que somos além de bichos que se acreditam cultos quando prestamos vassalagem ao dito sistema, dos bancos e capitais, que perpetua a pobreza e  a escravidão?  Não somos nós pobres e escravos dos senhores dos carros  de vidro fumados? E não seremos nós,  cultos e limpos e civilizados, mais culpados de que os outros, o tal de povo? Afinal, não sabemos mais e não cagamos mais postas de pescada? O que é o povo? O que somos nós?  E quem são verdadeiramente os outros, os que ninguém vê,  mas tudo podem?

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