domingo, 13 de novembro de 2011

Não é suposto nada


É suposto eu ser capaz de escrever um texto, porque esse é o meu trabalho. É suposto conseguir não mandar à merda o senhor da Emel por me ter mandado rebocar o carro, pois já aprendi que, por norma, ser mal-educada não me leva a lado nenhum a não ser à esquadra da policia e  ter de pagar a multa na mesma. É suposto estar apta a fazer um risoto na bimby, dado que é só ler as instruções e aprendi a ler aos seis anos, e de me controlar numa reunião, porque já não o fiz e disse mesmo o que pensava e passei por maluquinha. É suposto não gastar metade do meu ordenado em roupas, porque também tenho de comer, e não me esquecer do aniversário das pessoas, porque para elas é importante um telefonema, e saber que aquele verbo não se conjuga assim ou assado, porque até andei na escola, e não ficar triste porque ninguém se lembrou de me dizer que tinha cortado o cabelo e como te fica bem, ou isso não fosse matéria superficial que não alimenta o espírito. É suposto saber responder às perguntas do Elo Mais Fraco, afinal, parece que leio umas coisas, e não me esquecer de comprar o café, quando vou ao supermercado, porque já sei que sou dependente dele pela manhã, tarde e noite e abstinência forçada obriga-me a sair de casa qual zombie ainda antes do duche matinal, e já agora também é suposto não ficar deprimida porque não ganho o suficiente, porque afinal há quem ganhe menos do que eu, ou irritada porque o meu pai está convicto que vou me arrepender arduamente de não lhe dar um netinho, afinal, na idade dele é preciso dar o desconto. O é suposto é um peso que nos cria hérnias discais, mas que insistimos em carregar como se tivéssemos feito uma promessa a Fátima ou como se quiséssemos expiar não sei bem que pecados, mas que cena, todos temos sempre pecados a expiar, se não for pecados lá vem o karma, mesmo os que, como eu, não são católicos nem coisa nenhuma, mas que se lixe, mesmo assim é suposto, é suposto, é suposto. Agir by the book. Ser zen. Cumprir as metas e objectivos a que nos propusemos. Ser emocionalmente inteligentes. Gerir com acuidade. Ser prático e incisivo. Não dobrar face aos obstáculos. Mostrar superioridade. Cumprir o nosso destino para que seja feita qualquer coisa. No meio de tantos é suposto, nunca nos passa pela cabeça que nada, mas absolutamente nada, é suposto. Que os supostos todos são merdas que nos auto-impingimos, reflexos tantas vezes deturpados do que os outros acham que é suposto nós fazermos, e para os quais, se quiséssemos, nos marimbávamos de alto, porque não há ninguém com uma arma apontada à nossa cabeça, prestes a estoirar-nos os miolos, caso fizéssemos o que não é suposto. Que os supostos são tanto a coragem - de evoluir de conseguir de avançar para as metas que construímos para nós próprios - como sinais do medo que temos de desconhecido. Porque é que não me marimbo para o que é suposto? Alguém dirá que precisamos de estruturas, de auto-aperfeiçoamento, de puxarmos pelas nossas capacidades num work in progress. Eu penso por vezes que devíamos simplesmente fazer as coisas, não porque é suposto, mas porque nos apetece e ter a coragem de mandar o sentimento de culpa às urtigas. Hoje é suposto eu esquecer-me de comprar o café e não telefonar à minha tia Luísa que faz anos. E é suposto porque me apetece. Mais nada.

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