quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Regressa o nacional salazarismo e o ponto cruz

Nasci uns meses depois do 25 de Abril, de uma mãe que teve uma infância semi-privilegiada e até estudou num liceu (luxo máximo para a época) e de um pai que deu com os quatro costados em África porque o meu avó não queria preguiçosos lá em casa que não quisessem ir à guerra (isto foi antes de ter, de facto, dois filhos por lá). Não cresci no tempo de Salazar, mas conheço mais ou menos a história do 'pobrezinho mas feliz' que alimentou décadas de portugueses, quando éramos o país que batia recordes no âmbito da taxa de analfabetismo e de mortalidade infantil. Mas éramos felizes porque tínhamos pão e vinho sobre a mesa e as crianças cantavam quando iam descalças para a escola, lá em aldeias perdidas por detrás do sol posto, porque o grande pai olhava para elas e eram humildes, mas honestos. Tive a sorte de não viver nada disso, de ir calçada e quentinha para a escola - não fashion, porque a moda nos anos 80 era de morrer, a começar pelos kispos (mesmo assim, com k de Kapital, ainda em versão vermelha pós revolução) de capuz e pelas botas ortopédicas pensadas exclusivamente para traumatizar as crianças para o resto vida - mas a conversa da austeridade está a trazer ao de cima o salazarismo que andava escondido por aí. E ele é tanto. Embutido nas almas lusas como a Cartilha de São João de Deus. E porque não são só as pessoas com mais de 40 anos que fazem apanágio da terminologia e da estrutura de pensamento Estado Novo, começo a pensar que haverá algo inscrito no nosso código genético que nos conduz a isto, mais do que condicionantes sócio-culturais. Ou seja, inventámos o Estado Novo porque ele já existia dentro de nós.
Todas as conversas à minha volta – bem sei que vivo rodeada de gajas que se preocupam com a horta  – vão dar na conversa do pobrezinho e feliz. Sim, dizem, porque isto da crise não é assim tão mau, porque, pasme-se, é agora que vamos dar importância ao que é mesmo importante. Ora bem, isso é uma grande merda, porque não é suposto dar importância ao que é realmente importante só porque não temos outra possibilidade. Calculo que isso signifique a amizade e o amor e a ajuda ao próximo e tudo isso. Ora não me parece que tenham de ir ao bolso para que isso aconteça. É que numa sociedade evoluída, as nossas necessidades vão um pouco além do pão e vinho sobre a mesa. Queremos tempo de lazer. Jantar fora. Ter um carro e meter-lhe gasolina. Ir a concertos. Gostar de moda e sim, comprar roupa. Viajar. O que não signifique que sejamos atrasados mentais que precisam de recordar o que é mesmo, mesmo essencial. Mas a ordem das coisas é vamos deixar de ter isso tudo, mas vamos ser felizes. Melhor: vamos ser ainda mais felizes.  Já me estou a ver a tricotar uma  camisola de lã para oferecer ao meu namorado no Natal. Aviso já: não quero camisolas tricotadas à mão nem bombons ranhosos pelo Natal. Essencial por essencial, não me dêem nada se o que me for darem servir apenas para ocupar espaço útil no universo. E peguem nesse salazarismo bolorento, embrulhem-no bem em papel recuperado do Natal passado, juntem o cartão escrito à mão com pombas pintadas com aguarela e no porta-chaves feito com as tampas de garrafa recuperadas e mais o quadrinho em ponto cruz e enfiem-no no cú ou na campa do Salazar. A mim tanto me faz desde que as botas de cano alto da Zara me venham cair nas mãos.

3 comentários:

  1. Não sei se a deva tratar por senhora depois das asneiras e palavras desapropriadas que utilizou, mas aqui vai, a senhora porque nasceu depois do 25 de Abril, ou seja, ainda é uma garota, confundiu um bocado as coisas, é que nessa altura já não era o Dr. Salazar que governava, aliás o homem já tinha batido as 'botas', era o Dr. Marcello Caetano, o que faz a situação ficar diferente. Em relação á Zara, faz mal em comprar lá, porque pertence a um grupo espanhol, se quizer fazer bem as coisas, compre produtos portugueses, ou será que isso também lhe vai lembrar o salazarismo. Cumprimentos.

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  2. Obrigada pelo seu contributo. Mas acho que não sou novinha demais para saber que, apesar da primavera marcelista, a ideologia do estado novo não terminou com a saída de Salazar :) Quanto a comprar o que é nosso, se gosto, e apenas se gosto, compro. Mas odeio preconceitos tanto como pessoas sem sentido de humor e essa história de comprar o que é nosso cheira a xenofobismo à distância e discurso fácil.

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  3. Desconfio de anónimos, o que me lembra logo as denúncias secretas do Estado Novo, que não sejam dos Anonymous, porque esses têm uma razão para esconder a cara: destruir justamente a falácia lúcida e ironicamente aqui tão bem retratada de um mundo de pobrezinhos e felizes que nos querem vender como inevitável. Concordo também com a autora, pois o estado novo não só se prolongou com o marcelinho como continuou com o feudalismo actual de uns muito ricos e outros muito pobrezinhos e, obrigatoriamente muito felizes, a ganhar 500 euros para que os muito ricos escondam os quadripliquem os milhões em offshores. Parece óbvio que a mensagem de quem está no poder é: sejam felizes, pacatos e serenos mesmo que vos continuemos a dizer para baixar as calças enquanto os Belmiros e os Américos Amorins multiplicam as suas fortunas e os bancos são recapitalizados, ao arrepio de todas as ilegalidades e inconstitucionalidades, só porque sim, continuando a tirar casas, carros e posses à medida dos juros que lhes dão jeito. Parece pois que anónimo se assemelha, sem dúvida, a um garoto, pelo menos pelo discurso podia desfilar na Mocidade Portuguesa e erguer o braço em nome de todos os salazares e marcelos e socrates e passos coelhos e merkels deste mundo.

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